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Manhuassu: A República de Serafim Tibúrcio

21/09/2009 - Atualizado em 22/09/2009 22h13

Em 1895, o ambicioso fazendeiro Serafim Tibúrcio da Costa, que tinha a patente não oficial de coronel, como todos os donos de grandes extensões de terra na época, assumiu a Prefeitura de Manhuaçu, na Zona da Mata mineira, a 278 quilômetros de Belo Horizonte, mas o grupo político rival fez pressão e o enfrentou, na tentativa de derrubá-lo. Para se vingar do então governador Crispim Jacques Bias Fortes, que se negou a apoiá-lo, o coronel declarou o município um país independente, com moeda e legislação próprias, em um discurso no coreto da praça central da cidade, em 15 de junho de 1896, sete anos depois da Proclamação da República do Brasil.

A República Manhuassu (na época se escrevia com dois esses) durou apenas 22 dias. O governador enviou a polícia do estado ao município, para restabelecer a ordem, mas todos os soldados foram mortos pelos jagunços e os índios puris e botocudos a serviço do coronel. Serafim Tibúrcio só foi derrotado pelas tropas do Exército depois que Crispim Jacques pediu ajuda ao governo federal. Uma história manchada de muito sangue, que, por mais de 100 anos, ficou guardada apenas na lembrança de antigos moradores, até ser resgatada pelo professor de história Flávio Mateus dos Santos, que a conta e a documenta no livro A república do silêncio. 

Serafim Tibúrcio teria se recusado a enfrentar a tropa federal, composta por 380 soldados, e fugiu com seus aliados para a cidade de Afonso Claúdio, no Espírito Santo, onde tentou fazer revolução semelhante, mas fracassou de novo. Ele não deixou herdeiros e pouco restou de sua efêmera república. Até seu busto, feito em 1977 a pedido da prefeitura, está hoje em um canto da Casa de Cultura de Manhuaçu. Foi deposto de um pedestal em uma praça da cidade pela rejeição de moradores que perderam antepassados nas sangrentas batalhas travadas contra o ousado coronel.

A HISTÓRIA

Com os olhos lacrimejando e as mãos trêmulas, Pedro José Ribeiro, de 82 anos, ainda se lembra das histórias contadas pela avó sobre a revolta armada de 1896 em Manhuaçu, que deixou dezenas de mortos, um rastro de destruição e feridas que o tempo ainda não cicatrizou. A batalha só terminou depois de 20 dias, em 15 de junho daquele ano, quando o coronel Serafim Tibúrcio da Costa proclamou, do alto do coreto da praça central da cidade, a República Manhuassu (na época, com dois esses), quase sete anos depois da Proclamação da República do Brasil. “Fiquei sabendo que houve um grande derramamento de sangue na briga pelo poder. O primeiro marido da minha avó morreu no combate e nossa família teve que se mudar”, conta Pedro.

Esses fatos, que por mais de 100 anos ficaram guardados apenas na lembrança dos moradores mais antigos e em escassos documentos, são o tema de dissertação de mestrado do professor de história Flávio Mateus dos Santos, que lançou um livro sobre o assunto chamado A república do silêncio. “É uma página da história que estou devolvendo à região. Fatos importantes que haviam se perdido, devido aos interesses de determinados grupos, foram recuperados”, disse Mateus. A pesquisa durou 12 anos. Nesse período, dezenas de pessoas foram entrevistadas e documentos, analisados.

A República Manhuassu durou exatos 22 dias. Nesse período o país de Serafim Tibúrcio ganhou moeda e legislação próprias. As fronteiras foram cercadas por jagunços e índios puris e botocudos. Manhuaçu tinha área de 18 mil km² (hoje são 629 mil km² e 71,5 mil habitantes) e a economia se concentrava na produção de café. Ninguém podia entrar no território republicano sem autorização do então presidente coronel Serafim Tibúrcio, que estabeleceu como sede da República o casarão onde morava e atualmente funciona a Escola Estadual Monsenhor Gonzalez, no Centro da cidade. O estado independente que ele criou tinha praticamente o tamanho de Sergipe.

A notícia da revolta chegou ao governo de Minas Gerais, chefiado na época por Crispim Jacques Bias Fortes, levada por um inimigo do coronel, o agente dos Correios Alcestes Nogueira da Gama, que mais tarde chefiaria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no governo de Getúlio Vargas. Nos registros recolhidos por Flávio Mateus, houve três tentativas frustradas do governo do estado de restabelecer a ordem política em Manhuaçu. Em todas os policiais foram mortos a tiros, fatos noticiados no Diário Oficial de Minas Gerais na época.

Serafim Tibúrcio só foi deposto depois da interferência do Exército, que mandou a Manhuaçu 380 homens armados com carabinas, revólveres e canhões para enfrentar os aliados do coronel. “Dessa vez não houve resistência. Tibúrcio deixou a República e rumou para o Espírito Santo. Há quem diga que o ato teve apenas a intenção de ridicularizar o governo de Minas, que havia negado ajuda ao coronel quando ele foi candidato a prefeito de Manhuaçu”, explica o professor.

Tibúrcio chegou à região ainda jovem, como tropeiro. Natural dos arredores de Ponte Nova, começou a ganhar dinheiro como coletor de impostos. Ganhou a confiança dos coronéis que dominavam a cidade e logo virou delegado de polícia. Visionário, comprou a primeira máquina de limpar café da região e prestava serviço a todos os cafeicultores. Foi um dos homens que ajudaram a consolidar a construção dos prédios para que a sede do município fosse transferida de São Simão (atual Simonésia) para a Vila de São Lourenço do Manhuaçu, em 1877.

Em 1892, por indicação dos coronéis e também pela vontade popular, ele se tornou presidente da Câmara Municipal (cargo equivalente a prefeito). Fez benfeitorias na cidade, mas também usou do poder político para se enriquecer e distribuir terras aos simpatizantes. Era um jeito de garantir votos na eleição. A maneira de governar não agradou aos coronéis, que passaram a se sentir ameaçados pelo poder de Tibúrcio e começaram a sonegar impostos e a não pagar aluguéis. “Busquei esses registros nos cartórios de protesto. São documentos escritos à mão, em caneta tinteiro”, conta Flávio Mateus.

Preocupado com a forte oposição política, Tibúrcio foi até a capital mineira (na época, Ouro Preto) pedir ajuda ao então governador Crispim Jacques Bias Fortes para intervir no município, mas teve o pedido negado com base no artigo 61 da Constituição vigente na época, que, entre outras determinações, previa que o estado não podia intervir na administração municipal. “A brecha na Constituição permitia que políticos criassem leis, escolhessem vereadores a dedo e fizessem o que quisessem. O poder político dos coronéis virou algo fascinante. Os grandes donos de terras, padres e todos aqueles que conseguiam entrar para a política faziam com que toda uma sociedade andasse de acordo com seus interesses. Mas foi essa Constituição que deu início ao declínio político do coronel Tibúrcio”, afirma o historiador.

Serafim Tibúrcio teria retornado da capital revoltado e achou uma Manhuaçu diferente. Um dos seus inimigos mais ferrenhos, o padre Odorico Dolabella, havia expulsado as famílias que ocupavam terrenos doados pelo coronel a tropeiros que chegavam a Manhuaçu. “A alegação do religioso era de que as pessoas estavam construindo prostíbulos naquelas áreas”, diz o professor.

Em 1895, nas eleições para prefeito, Serafim Tibúrcio venceu nas urnas, com 636 votos à frente do segundo colocado, Frederico Dolabella, que foi conduzido ao poder por indicação dos coronéis rivais. Frederico Dolabella governou Manhuaçu até 1905, acompanhado do irmão, o vigário Odorico, que soube articular um quadro em que ganhava apoio, enquanto Serafim Tibúrcio perdia sustentação.

Depois do revés, Tibúrcio se refugiou em fazendas nas proximidades de Caratinga. Foi nessa espécie de exílio político que ele elaborou a estratégia de retomada do poder. Contou com a ajuda dos índios e dos jagunços, que também haviam sido expulsos da cidade pelos coronéis, por intermédio do padre Odorico. “Contam os registros que a tropa liderada por Tibúrcio chegou ao município no início de maio de 1896. Foram dias e noites de confronto nas ruas e praças, até a proclamação da República Manhuassu, num ato histórico em Minas Gerais que pouca gente conhece”, esclarece Mateus.

REVOLUCIONÁRIO E AMBICIOSO

Na época da revolta armada em Manhuaçu, o Brasil era uma jovem República, declarada sete anos antes, em 15 de novembro de 1889, pelo marechal Deodoro da Fonseca. Serafim Tibúrcio era um homem inteligente. Ele participou do processo de transição entre a monarquia e república e soube se adaptar às mudanças para tirar proveito político.

Serafim Tibúrcio acompanhou os ideais da República. Como um dos partidários do então governador de Minas, Cesário Alvim, disseminou ideias do movimento republicano entre o povo. Era dono de um jornal na cidade, o que o ajudou a propagar seus propósitos. “Tibúrcio era um homem de visão política e econômica privilegiada. Acreditava que poderia abrir caminhos para facilitar a chegada dos carregamentos de café aos portos no litoral capixaba”, conta o historiador.

Na República Manhuassu, o réis, moeda oficial, foi substituído pelo boró, criado pelo coronel Serafim Tibúrcio e que em tupi-guarani significa peso. Há registros de que tenham sido cunhadas moedas, mas nenhuma foi encontrada pelo pesquisador. Na República Manhuassu a constituição foi apenas verbalizada, já que o império político de Tibúrcio durou somente 22 dias. Assim que tomou posse como presidente da República Manhuassu, ele mandou incendiar o único cartório da cidade. “Não houve tempo para a instalação plena do novo regime político”, comenta.

Duas cidades da região, Reduto e Realeza, têm seus nomes ligados ao período da revolta armada. A primeira, no dicionário Aurélio, quer dizer local de concentração de tropas. Foi nessa localidade que os oficiais do Exército ficaram escondidos em 1896 até receberem ordem de invadir Manhuaçu. Na época, o local era apenas um pequeno aglomerado de fazendas. Já a vizinha Realeza era onde as pessoas se refugiavam para falar do império do coronel Serafim Tibúrcio. “As pessoas diziam que Manhuaçu havia se transformado numa grande realeza do coronel”, diz o professor.

Debandada dos republicanos

Deposto pelo Exército, depois de 22 dias de República, Serafim Tibúrcio fugiu com aliados para a cidade de Afonso Claúdio, no Espírito Santo, onde tentou fazer revolução semelhante, mas fracassou. Foi lá também que, de acordo com os registros, seus bens cresceram. Ganhou fazendas e gado, o que, para o professor Flávio Mateus, reforça a tese de que ele havia deixado Manhuaçu depois de um acordo com o governo.

 “Estranhamente, Tibúrcio não resistiu como fez com as tropas mineiras. Relatos de pessoas ligadas à época dão conta de que ele havia ficado magoado por não ter recebido apoio do governo de Minas quando ainda era prefeito de Manhuaçu e quis se vingar. Tomar uma cidade para ele foi uma tentativa clara de ridicularizar o governador, que precisou buscar ajuda em outra esfera para normalizar a situação de Manhuaçu”, conta Mateus.

Serafim Tibúrcio não deixou herdeiros. Pouco antes de morrer, aos 68 anos, em 19 novembro de 1919, de causa natural, numa propriedade rural em Espera Feliz, também na Zona da Mata, deixou uma carta pedindo que fosse enterrado em Manhuaçu. “O caixão com o corpo chegou à antiga estação ferroviária, hoje terminal rodoviário, de trem e foi carregado até o cemitério municipal de mão em mão por moradores. Há indícios de que dois anos antes de morrer ele selou a paz com os inimigos numa de suas fazendas”, relata o professor. O corpo foi sepultado em cova rasa, aos pés de uma palmeira.

Pouco mais de 113 anos depois, Manhuaçu, com suas ruas estreitas, guarda escassas lembranças daquele período. Na praça onde Serafim Tibúrcio proclamou a República, o coreto não existe mais, somente bancos e jardins. Casarões antigos, como o local onde viveu o coronel, resistem ao tempo. Hoje, sua antiga residência abriga uma escola. As picadas (trilhas) feitas na mata, que serviam de acesso a cidades importantes da região, como Caratinga e Ponte Nova, deram lugar a rodovias, como as BRs 116 e 262, por onde passa incontável parcela do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. O coronel ganhou uma discreta rua com seu nome, no Bairro Coqueiro, onde pouca gente sabe da sua história. “Acho que ele foi prefeito da cidade”, diz a dona de casa Marlene Domingues da Cruz, de 52 anos.

Depois da batalha, famílias inteiras se mudaram com medo de mais massacres, e os inimigos políticos de Serafim Tibúrcio não tinham interesse em manter a memória do rival, o que dificultou a pesquisa feita pelo professor Flávio Mateus. Arquivos inteiros foram queimados depois do fim da República por coronéis que queriam apagar a façanha de Tibúrcio. “Foi um fato que mexeu muito com as famílias importantes. Dessa forma, nunca houve interesse que essa história deixasse os limites de Manhuaçu”, lamenta o professor, que planeja fazer um documentário sobre o assunto.

Descendente dos Dolabellas, o aposentado Cláudio Fernando Dolabella, de 67, diz que por muitos anos a revolta de 1896 era assunto proibido entre seus familiares. Dessa maneira, teve pouco conhecimento do que ocorreu no período. “Havia um pacto, não declarado, para evitar comentários sobre o assunto, que trazia muito sofrimento. Fiquei sabendo da implantação da República pela boca dos próprios moradores, que relataram o confronto entre os Dolabellas e Serafim Tibúrcio pelo poder político”, diz Cláudio Fernando.

Segundo Cláudio, os primeiros membros de sua família a chegar à região de Manhuaçu foram os irmãos Odorico, Frederico e Orácio Dolabella. Todos oriundos de Santa Luzia, hoje integrante da Região Metropolitana de Belo Horizonte, que queriam expandir suas riquezas: “É uma história que até merece filme. Criaram um país a mais na América do Sul”.

Presidente da Academia de Letras de Manhuaçu, o advogado Luís Gonzaga Amorim diz que na cidade Serafim Tibúrcio é tratado como bandido por parte da população e herói por outra. “Na verdade, ele faz parte da história da região. Criou uma situação única no município, inspirado em um modelo que era praticado no país”, afirma o advogado.

Em 1977, durante a comemoração do centenário de Manhuaçu, o então prefeito Camilo Nacif mandou fazer um busto de Serafim Tibúrcio e o instalou em uma praça do Bairro Coqueiro. No momento da homenagem, as filhas de Antônio Welersom (promotor de Justiça da época da declaração da República e um dos inimigos de Serafim Tibúrcio) deixaram o local. O gesto foi repetido por outros moradores e, em poucas semanas, o busto foi retirado da praça e guardado na Casa de Cultura de Manhuaçu, onde está até hoje, num canto, separado de outros, como o da princesa Isabel e o do presidente Getúlio Vargas. No mesmo lugar, em um mural dedicado à memória das figuras importantes do município, não há nome nem retrato de Serafim Tibúrcio.

Daniel Antunes - Estado de Minas - 21/09/09 - 12:59

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